Abril de 2021

Em 2016, observamos o fim aparente da política de conciliação de classes iniciada por Lula e continuada por Dilma. O impeachment, aprovado por deputados e senadores que meses antes declaravam lealdade à presidenta, sinalizou que a classe dominante brasileira não estava mais disposta a conciliações. Atraídos pela “Ponte para o Futuro” de Michel Temer, que delineava um programa ultra neoliberal, os super ricos viam uma oportunidade de ouro para, afastando o PT, avançar na destruição de direitos e desmonte do Estado, em um grau que o partido de Lula, mesmo disposto a enormes concessões, não teria condições de realizar.

Temer conseguiu entregar à classe dominante a contrarreforma trabalhista e o teto de gastos, preparando o terreno para um governo de continuidade da política de terra arrasada. O principal nome da alta burguesia era, como nas eleições anteriores, o do tucano na disputa. Mas Geraldo Alckmin logrou o pior resultado em eleições presidenciais do seu partido, com menos de 5% dos votos válidos. Ainda durante a campanha do primeiro turno, Alckmin viu a base social e eleitoral dos tucanos migrar para a candidatura de Jair Bolsonaro. A campanha de criminalização da política, por meio do suposto “combate à corrupção”, havia se voltado contra o próprio PSDB.

Assim como havia abraçado as teses neoliberais nos anos 1990, a classe dominante brasileira aderiu com entusiasmo renovado ao ultra neoliberalismo tardio comandado por Paulo Guedes. A destruição do que restava de direitos sociais e trabalhistas, a intensificação das privatizações e o desmonte do Estado em áreas consideradas limitantes ou concorrenciais ao grande capital (fiscalização ambiental, previdência, saúde, educação etc.) abriam a possibilidade de lucros ainda maiores aos ganhadores de sempre. Não à toa, acompanhando o que também aconteceu com os super ricos em outros países, os bilionários brasileiros tiveram significativo aumento de patrimônio durante a pandemia (https://www.oxfam.org.br/noticias/enquanto-grandes-empresas-lucram-na-pandemia-os-mais-pobres-pagam-o-preco).

No entanto, o receituário neoliberal já se encontrava em déficit de credibilidade havia pelo menos dez anos. A crise das hipotecas nos Estados Unidos, que estourou em 2008, escancarou os perigos da desregulamentação das instituições financeiras e do rico mercado de títulos controlado por elas. Essa crise também mostrou que até o mais aguerrido neoliberal se torna um defensor da intervenção estatal quando se trata de salvar grandes empresas, seus executivos e grandes acionistas. A defesa veemente da austeridade fiscal se aplicaria aos gastos com os trabalhadores, trabalhadoras, com as pessoas mais pobres e com os serviços públicos destinados a elas.

Portanto, o neoliberalismo tardio de Guedes já estava em decadência no início de sua gestão no Ministério da Economia. Para piorar, antes que o “Posto Ipiranga” completasse um ano no cargo, as revoltas populares no Chile feriram gravemente o modelo neoliberal no país que havia sido o primeiro laboratório dessas políticas no continente. E, em 2020, a pandemia colocou em xeque toda a defesa do mercado livre e desregulamentado como o melhor sistema possível de alocação de recursos. O papel dos Estados foi e continua a ser indispensável no estabelecimento de políticas de prevenção e contenção da pandemia, bem como na aquisição e aplicação das vacinas.

Desde o início da pandemia, o governo Bolsonaro se agarrou ao negacionismo e teve o apoio de grande parte da classe dominante ao ignorar as recomendações da comunidade científica. Hoje já se reúnem evidências de que o presidente e sua equipe trabalharam deliberadamente para a propagação do vírus (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html).

Em abril de 2021, vemos o Brasil se aproximando de 400 mil pessoas mortas pela COVID-19. Este já é o mês mais terrível até aqui. Se a pandemia assolou todo o mundo capitalista, o fato de nosso país caminhar a passos largos para superar os EUA como o campeão mundial de mortes diz muito sobre quem comanda este país — não só o presidente, mas a classe que lhe deu sustentação até agora.

Os vários segmentos da classe dominante brasileira — como o agronegócio, as grandes redes de comércio varejista, as grandes empresas de comunicação, o que resta da grande indústria e, à frente de todos, o capital financeiro — descendem em linha direta dos primeiros proprietários de sesmarias, senhores de engenho e barões de café do passado. São, portanto, escravocratas em sua essência. Sonham com a manutenção de uma sociedade em que uma grande população empobrecida trabalhe por baixíssimos salários (ou, se possível, sem receber salários) para perpetuar a riqueza do topo da pirâmide. De sua herança escravocrata também derivam seu crônico autoritarismo e sua pulsão pelo genocídio.

Ao mesmo tempo em que exerce seu domínio sobre a sociedade brasileira, a classe dominante nativa é subordinada às burguesias dos países capitalistas centrais. Assim, mantém e aprofunda a inserção do Brasil como exportador de produtos primários para os países desenvolvidos. Em consequência, amplia a dependência do país em relação à tecnologia desenvolvida naqueles países. E importa, além dos produtos industrializados que desistimos de fabricar, todo um arsenal ideológico destinado a justificar a presente ordem das coisas. Portanto, trata-se de uma classe dominante colonizada, que se comporta como uma elite colonial. Adora os modismos vindos da metrópole e almeja ser recebida com pompas pelos grandes senhores do norte geopolítico. Ao exibir essas características, mostra-se provinciana, pouco intelectualizada e medíocre.

A baixa capacidade intelectual e a mediocridade da alta burguesia brasileira pareceram se tornar visíveis na forma temerária como os super ricos apoiaram um político tagarela, fofoqueiro, imbecil à presidência e comemoraram a indicação do seu ministro da economia, um fanático ultraliberal sem experiência na administração pública. De forma semelhante, a classe dominante aderiu em peso ao falso dilema entre preservar vidas e salvar a economia, com as consequências que agora vemos: centenas de milhares de mortes e aprofundamento da crise econômica.

No entanto, nenhuma dominação se mantém sem um mínimo de atenção à realidade e de correção de rumos diante da catástrofe. Nos últimos meses, foi perceptível a mudança de atitude de parte da classe dominante diante do governo federal. Seja devido à interferência de Bolsonaro na presidência da Petrobras, que desagradou aos megainvestidores. Seja devido ao atraso na vacinação, que agora passou a ser também uma demanda dos setores dominantes, que veem os exemplos bem sucedidos de países imunizando suas populações e foram convencidos de que só a vacinação em massa garante a retomada econômica. Seja devido à insatisfação com o ritmo das contrarreformas neoliberais e da entrega das estatais ao capital privado, que a alta burguesia desejaria acelerar ainda mais. Seja devido à divulgação da evolução do PIB em 2020, que posicionou o Brasil na lanterna do planeta, com a maior taxa de contração da economia entre os países mais ricos do mundo. Seja por causa da repercussão mundial da política de devastação ambiental comandada por Ricardo Salles e de possíveis retaliações às exportações brasileiras, em resposta a essa política.

Em outras palavras, as principais preocupações da classe dominante estariam, mais uma vez, em torno de suas taxas de lucro, que viabilizam a acumulação de capital. Preocupações humanitárias (número de mortos na pandemia, iminente colapso hospitalar e funerário) ou ambientais (devastação de biomas como o Pantanal e a Amazônia, ameaça aos povos originários, quilombolas e ocupantes tradicionais das áreas cobiçadas) não estariam entre os motivos de insatisfação da alta burguesia.

E tanto é assim que, mesmo com todo o esforço para consolidação total, na constituição e na prática, da ordem social violenta e excludente no ritmo determinado pelo mercado (banqueiros e grandes corporações), vimos na primeira quinzena de março uma mudança na conjuntura político-eleitoral do Brasil. A decisão liminar de Edson Fachin, no Supremo Tribunal Federal – STF, anulando as condenações de Lula ao declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para processar e julgar as ações da Operação Lava Jato contra o mesmo, abriu a possibilidade de o ex-presidente concorrer ao Palácio do Planalto.

No dia seguinte, Gilmar Mendes, no mesmo tribunal, durante a sessão de julgamento sobre a suspeição de Sérgio Moro, atacou com contundência os métodos da Operação Lava Jato e o papel da imprensa na repercussão acrítica das ações de “combate à corrupção”. E, na quarta, a entrevista/discurso do próprio Lula apresentou praticamente uma plataforma de campanha, colhendo avaliações positivas até mesmo de prepostos da grande imprensa. No mesmo dia, Bolsonaro se mostrou atingido pela fala do ex-presidente. Pela primeira vez em semanas, apareceu com sua equipe usando máscaras e respeitando o distanciamento social, enquanto seu filho senador tratava de repercutir o novo lema: “Nossa arma é a vacina”.

Cerca de duas semanas após o pronunciamento de Lula, a segunda turma do Superior Tribunal Federal – STF reconheceu a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condução da ação penal que culminou na condenação do ex-presidente por corrupção passiva e lavagem de dinheiro referentes ao triplex em Guarujá (SP).

E um mês após, o plenário do STF decidiu, por maioria, que os quatro processos da operação “lava jato” contra Lula, que corriam em Curitiba, devem ser enviados à Justiça Federal do Distrito Federal.

Confirmando-se assim, não só o impedimento da Vara de Curitiba, mas a suspeição de Moro no julgamento no caso do triplex do Guarujá. Desta forma, Lula encontra-se desimpedido para concorrer à presidência da república.  Nesse meio tempo, o presidente da República mobilizou sua base mais fiel e externou ameaças autoritárias.

No mesmo período, Luís Barroso concedeu liminar determinando que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, adotasse providências para criar e instalar Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI para apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de Covid e determinou o envio imediato do caso ao plenário do STF, que confirmou sua decisão.

Esses fatos são reveladores de que a classe dominante prepara seu desembarque do apoio a Bolsonaro. Como publicou uma conhecida jornalista antipetista, dias antes da decisão de Fachin, empresários começam a verbalizar a opção de votar no “demônio” para remover o capitão da presidência (https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2021/03/05/a-volta-do-demonio-pesquisa-e-empresarios-indicam-fortalecimento-de-lula.htm). No dia seguinte ao discurso de Lula, a reação positiva do mercado financeiro, com a alta na bolsa e a queda do dólar, reforçava esta conclusão.

Porém, a mudança de atitude com relação a Lula não sinaliza nenhuma mudança de rumos no cerne da política econômica neoliberal. No encerramento da mesma semana de março em que a situação jurídica do líder petista começou a se modificar, o Congresso Nacional concluiu a votação da PEC Emergencial, que mais uma vez garantiu aos banqueiros o fluxo ilimitado de recursos públicos. Isto assegura o enriquecimento astronômico de todas as frações do grande capital, às custas de um arrocho ainda maior nas contas públicas e, portanto, na previdência, saúde, educação etc. Outras emendas serão votadas a toque de caixa nas próximas semanas e meses, inscrevendo na Constituição Federal a garantia dos interesses sagrados da classe dominante, às custas do empobrecimento ainda maior dos trabalhadores, trabalhadoras e da maioria da população.

O grande empresariado prepara seu embarque em outra candidatura, que pode ser a de Lula. O petista terá esse riquíssimo apoio se houver o compromisso, semelhante ao firmado em 2002, de “respeitar os contratos”, ou seja, não alterar os pontos centrais da política neoliberal imposta no período anterior. Em 2003, Lula assumiu o governo sem reverter as principais medidas tomadas por FHC e ampliando o superávit primário (economia forçada para pagamento de juros e amortizações da dívida pública, nunca analisada/auditada). Em 2023, pode reassumi-lo preservando o triste e cruel legado de Temer e Bolsonaro. Seria o renascimento da política de conciliação de classes, mas em condições piores para os trabalhadores e trabalhadoras do que aquela iniciada há duas décadas.

A política genocida do governo Bolsonaro coloca a necessidade urgente do impeachment desse governo para salvar vidas. Mas, a esquerda socialista precisa ir além do “Fora, Bolsonaro” (palavra de ordem que, de resto, poderá em breve ser assumida pela alta burguesia) e exigir a revogação das medidas neoliberais tomadas nos últimos anos, em especial: o teto de gastos, as contrarreformas trabalhista e previdenciária, a nova emenda dita “emergencial” e as privatizações de ativos da Petrobras.

Deve exigir a revogação da autonomia do Banco Central e de todas as medidas ilegítimas, legais e ilegais, de transferência do dinheiro da população de forma permanente e prioritária para a dívida pública (uma dívida que quanto mais se paga mais ela cresce). Deve exigir, também, a realização da Auditoria da Dívida Pública com participação cidadã, como instrumento de reversão da sangria dos recursos públicos e de denúncia do permanente favorecimento aos interesses do sistema financeiro (bancos e grandes corporações) em detrimento da grande maioria da população.

De 1995 a 2015, o governo federal gastou 1 trilhão de reais a menos do que o que arrecadou. Neste mesmo período de 20 anos a dívida pública federal saltou de 86 bilhões de reais para quase 4 trilhões (https://auditoriacidada.org.br/conteudo/auditoria-da-divida-e-urgente-e-necessaria-por-maria-lucia-fattorelli/ ).

Em dez anos, o Tesouro Nacional gastou quase 3 trilhões para sustentar o Banco Central (https://auditoriacidada.org.br/conteudo/tesouro-gastou-quase-r-3-trilhoes-com-o-banco-central/) e a crise fabricada derrubou o PIB em cerca de 7% em 2015-2016, tendo como resultado, milhares de empresas falidas e milhões de pessoas desempregadas (https://auditoriacidada.org.br/conteudo/crise-fabricada-expande-o-poder-do-mercado-financeiro-e-suprime-direitos-sociais/)

A esquerda radical também deve cobrar julgamento dos responsáveis pelo genocídio da população brasileira durante a pandemia, em especial os militares de alta patente que ocupam cargos no governo, mas sem negligenciar os setores do grande capital que deram suporte e apoio à política de morte, aí incluídos os empresários do setor médico e hospitalar que deram respaldo ao negacionismo presidencial.

Uma das lições da derrocada do petismo em 2016 é que, ao não reverter as medidas antipopulares tomadas no período anterior, governos de esquerda ou centro-esquerda apenas pavimentam o caminho para o retorno, continuidade e aprofundamento das políticas de direita.

Devemos defender que o PSOL tenha candidato próprio no primeiro turno da eleição presidencial prevista para 2022. E tentar incidir na plataforma da campanha, de modo a consignar nela a exigência de reversão de medidas neoliberais. Ao mesmo tempo, e de forma independente do desenlace que o partido der a essas reivindicações, temos a tarefa de organizar com outros agrupamentos da esquerda socialista uma frente pública que dê visibilidade à pauta antineoliberal.

PSOL: Construir uma alternativa para a sociedade ou sucumbir de vez ao neoliberalismo!

O Partido Socialismo e Liberdade nasceu a partir de um ato de rebeldia de militantes que estavam na luta institucional. Em 13 de dezembro de 2003, o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores se reuniu em um hotel em Brasília para decidir a expulsão de quatro parlamentares petistas que haviam votado pela rejeição da contrarreforma da previdência proposta pelo governo Lula. A senadora Heloísa Helena, a deputada federal Luciana Genro e os deputados federais João Batista Babá e João Fontes serviriam de exemplo a quem se insubordinasse contra a linha de conciliação de classes e de concessão ao neoliberalismo que o PT passava a adotar.

O PSOL reuniu militantes de esquerda insatisfeitos e insatisfeitas com os rumos do PT. Mesmo diante da alta popularidade de Lula, que iria se reeleger em 2006 e eleger sua sucessora em 2010, nosso partido ousou construir uma linha de oposição de esquerda ao governo, diferenciando-se da direita oposicionista encabeçada pelo PSDB. Essa postura de oposição foi assumida pela pequena e atuante bancada do PSOL no parlamento federal e também se expressou nas candidaturas presidenciais de Heloísa Helena, em 2006, de Plínio Sampaio, em 2010, e de Luciana Genro, em 2014. Essa postura oposicionista foi fundamental para que o PSOL conquistasse respeito e credibilidade ao longo dos seus primeiros anos.

As Jornadas de Junho de 2013 sinalizaram uma primeira mudança nas relações entre o nosso partido e o governo do PT. O senador Randolfe Rodrigues, então filiado ao PSOL, se reuniu com Dilma Rousseff e a fotografia do encontro foi divulgada, como forma de mostrar apoio diante dos ataques que o governo federal sofria. O evento foi repudiado por grande parte do partido, mas não impediu que Randolfe fosse escolhido o candidato presidencial do PSOL em 2014. Isto só não se concretizou graças à desistência do senador, por meio de seu pedido de desfiliação do partido.

No segundo turno da eleição de 2014, as principais lideranças do PSOL atenderam ao apelo do PT, para que a esquerda se unisse em torno do esforço de impedir a volta do PSDB ao governo federal. Deliberações semelhantes à daquele ano — “nenhum voto no PSDB” — já haviam sido tomadas em 2006 e 2010. Mas o apoio dado em 2014 revelou um entusiasmo maior das maiores correntes que compõem o Psol. Naquele segundo turno, todas as críticas às políticas neoliberais e às enormes concessões feitas pelos governos petistas foram silenciadas.

Com a vitória do PT, a presidenta iniciou seu segundo mandato nomeando Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e realizando um duro ajuste fiscal. Era justamente o que o PT, durante a campanha, havia falado que o PSDB iria fazer e anunciado que Dilma não iria imitar. O estelionato eleitoral contribuiu para a popularidade do governo desabar, juntamente com uma campanha sem precedentes históricos de boicote do Congresso Nacional com forte apoio das redes de comunicação, processo este que paralisou o país por cerca de 02 (dois) anos. No processo de impeachment liderado pelos setores conservadores, o PSOL se posicionou contra o impedimento de Dilma, avaliando corretamente que a direita neoliberal, com Michel Temer à frente, radicalizaria na imposição da agenda econômica neoliberal. Como a ordem era defender a permanência do governo, as críticas à política neoliberal adotada pelo próprio PT continuaram sendo silenciadas.

A maioria do PSOL manteve o posicionamento, durante o governo Temer, de que a unidade das forças de oposição exigia o silenciamento da crítica aos governos do PT. Tornou-se um verdadeiro tabu levantar questionamentos às medidas neoliberais e concessões ao grande capital adotadas pelos governos Lula e Dilma. Esta atitude perdurou na luta contra a prisão de Lula e, mais tarde, na própria campanha presidencial de 2018, em que Guilherme Boulos iniciava sua participação no debate dando boa noite ao ex-presidente preso. Evitava-se qualquer crítica mais incisiva ao legado negativo dos governos petistas. Mesmo quando se teciam críticas à política de conciliação de classes conduzida pelo PT, tratava-se de não nomear o principal responsável por essas políticas: o próprio Lula.

Em 2018, chegava à presidência da República um candidato que, para muitos dos analistas políticos, jamais conseguiria ser eleito. Nos dois anos anteriores, aprofundando as políticas dos Governos de Lula e Dilma, de quem era vice-presidente, Michel Temer havia conseguido entregar à classe dominante a contrarreforma trabalhista e o teto de gastos, preparando o terreno para um governo de continuidade da política de terra arrasada.

Obviamente, não se pode subestimar uma figura truculenta, negacionista e perigosa como o atual presidente. Mas também não se deve superestimá-lo, sob pena de empreender análises equivocadas que acabarão prejudicando o avanço político das organizações de esquerda e das forças populares. Assim, é preciso entender o atual governo federal como instrumento do grande capital para realização dos seus interesses econômicos. A destruição da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), a imposição do ajuste fiscal na constituição federal – agora é norma constitucional – o saque permanente das riquezas financeiras, minerais, do território nacional, da água e dos saberes milenares dos povos originários, ribeirinhos e quilombolas, a cassação do que restava de direitos sociais e trabalhistas, a retomada das privatizações e o desmonte do Estado em áreas consideradas limitantes ou concorrenciais ao grande capital (fiscalização ambiental, previdência, saúde, educação, etc.) abriam a possibilidade de lucros ainda maiores aos ganhadores de sempre.

Esta política desenvolvida, que é buscada, almejada pela “burguesia nacional”, de integração generalizada à política de subserviência ao imperialismo ianque, deve  ser observada, pois trata-se da manutenção de seu status quo, ou seja, da manutenção de um sistema segregador, muito próximo a um sistema de castas, onde a mínima possibilidade de interação entre as diversas classes sociais deverá ser duramente combatida através do aumento exacerbado de políticas ultraliberais e consequentemente maior segregação, racismo, machismo e políticas de exclusão contra as ditas “minorias”.

De certo modo foi o que ocorreu com as políticas assistencialistas, focalizadas e insuficientes para atender a todos e todas dos governos petistas, as quais possibilitaram um maior consumo às classes E, D e C. Através do consumo e da pequena inserção no sistema educacional, desestabilizaram segmentos da intocável pequena burguesia, que passou a sentir-se ameaçada.

A grande imprensa atua como a voz direta do mercado financeiro (banqueiros e grandes corporações) e seus interesses. A partir de 2015, intensificou a difusão de ideias simplistas repetidas como mantras: “Dilma quebrou o Brasil”, “Lula chefiou o maior esquema de corrupção da história”, entre outras falas assemelhadas. Preparou o caminho, assim, para a extrema direita, que hoje repete fanaticamente essas frases e ainda ataca os órgãos de imprensa que ajudaram a difundi-las, como a Globo e a Folha de São Paulo. Políticos de direita queridos pela classe dominante e pela grande mídia, como João Dória e Rodrigo Maia, também se tornam alvos da fúria bolsonarista.

Mesmo que o veneno do antipetismo se volte contra seus inoculadores e contra seu partido político preferido, o PSDB, a grande mídia se mantém fiel ao receituário neoliberal. Seus âncoras e comentaristas vibram com notícias de privatizações, cortes de gastos públicos, redução de direitos trabalhistas, previdenciários e assistenciais, congelamento de salários de servidores e servidoras públicas, fim do aumento real do salário mínimo, entre outras medidas danosas a quem vive do trabalho. O grande capital, comandado pelo setor financeiro, ainda não retirou totalmente seu apoio a Bolsonaro, pois com Guedes à frente, ele tem aproveitado a pandemia para impor, na base da chantagem, da mentira e do toma lá dá cá, a política econômica imposta pelo BIS (Banco de Regulações Internacionais, denominado Banco Central dos Bancos Centrais), através do FMI, do Banco Mundial e do Comitê de Basiléia, dentre outros órgãos.

A necropolítica de Bolsonaro somada às enormes desigualdades sociais resultantes do sistema capitalista levaram o Brasil ao estado de calamidade em que se encontra: caos na saúde, falta de vacinas, medicamentos, oxigênio, hospitais, descontrole total da pandemia, fome avassaladora, miséria e violência. O Brasil é hoje um enorme laboratório para proliferação e mutação do coronavírus. Esta realidade e a política de destruição do meio ambiente colocam o país no centro das críticas internacionais. E isso tem suas consequências, razão pela qual, em 22 de março de 2021 foi lançada a Carta de Empresários, Economistas e Ex-autoridades do setor público, com críticas à atuação do governo Bolsonaro na pandemia, cobrando mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social, refutando o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerávelhttps://www.bbc.com/portuguese/brasil-56485687

Estão preocupados, também, porque sabem que a completa dependência econômica faz com que a burguesia perca setores importantes da classe média. O Estado está com sua infraestrutura sucateada e dependente exclusivamente da mercantilização, tornando o Brasil de um modo geral, um país de meros consumidores.

Por tudo isto, a proposta de “frente ampla” dos setores ditos democráticos, desde a esquerda até a direita, mostrou sua inviabilidade prática na derrota da patética candidatura de Baleia Rossi à presidência da Câmara dos Deputados. Arthur Lira obteve uma folgada maioria graças também a parlamentares ditos de esquerda. Entre esses, pelo que os números indicaram, contaram-se inclusive parlamentares da bancada do PT. No Senado, os petistas nem se deram ao trabalho de simular alguma resistência ao bolsonarismo. Engajaram-se desde o início na candidatura de Rodrigo Pacheco. Nas duas casas do parlamento, a maioria de direita, de um lado, mostrou sua fidelidade de classe à alta burguesia. Do outro lado, o grosso da minoria parlamentar, de esquerda ou centro-esquerda, reafirmou seu pragmatismo, sempre pronto à conciliação e a reiteradas concessões, de olho em pequenos espaços de poder, como cargos na mesa diretora e presidências de comissões.

Em março, a decisão liminar pela anulação das condenações de Lula, a retomada do julgamento da suspeição de Sérgio Moro e a repercussão positiva da entrevista/discurso do ex-presidente petista indicaram que parcela da alta burguesia ensaia seu desembarque do apoio a Bolsonaro.

As parcelas descontentes do grande empresariado preparam seu embarque em outras candidaturas, e uma delas — talvez a principal — pode ser a de Lula, desde que ele, assim como fez em 2003, assegure o cumprimento dos contratos, a manutenção das contrarreformas neoliberais, as privatizações, a sangria permanente das riquezas naturais e financeiras, de acordo com as determinações do FMI e Banco Mundial, braços do Banco de Regulações Internacionais – BIS. E tudo isso sem sobressaltos, sem fortes reações, com a garantia plena da governabilidade. Todos os discursos, entrevistas e declarações que têm sido dadas por Lula, no momento de sua prisão no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, após sua saída da prisão e ao readquirir o direito à elegibilidade são sinais contundentes de que o mesmo não só está disposto, mas convicto da política de conciliação e colaboração de classes dos governos petistas. 

Política que, antes mesmo da pandemia, de um modo geral é adotada por seus aliados no movimento sindical e popular, que priorizam o calendário eleitoral em detrimento da mobilização, da luta, do enfrentamento real aos governos ultra neoliberais e suas políticas de destruição dos direitos, dos serviços públicos estatais e das riquezas nacionais.

Diante do exposto, consideramos um equívoco a verbalização, por lideranças do PSOL, da possibilidade de apoio a Lula no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022. O PT não deu mostras de querer praticar uma política diferente daquela que marcou seus governos entre 2003 e 2016.

Durante aqueles 13 anos mantiveram e aprofundaram a política econômica e monetária de FHC (superávit primário, metas de inflação e juros altos, dentre outros mecanismos), com a transferência anual de cerca de 40% do orçamento executado para pagamento de juros e “amortizações” da dívida pública; dinheiro da população, que deveria ser aplicado nos serviços públicos e nas políticas sociais, mas que foram para banqueiros e grandes empresas. E não permitiram que essa dívida ilegítima, que quanto mais se paga mais ela cresce, fosse auditada/analisada, como determina a Constituição Federal de 1988. Foram contra a auditoria na CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados, em 2009/2010 e quando a mesma foi aprovada pelos parlamentares no Plano Plurianual (PPA 2016-2019) a presidenta Dilma a vetou no dia 14/01/2016. Além disso, relembra-se:  a construção das grandes usinas hidroelétricas de Jirau, Santo Antônio e, em especial, Belo Monte, com os enormes impactos ambientais e sociais que acarretaram; redução drástica da reforma no segundo governo Lula, com paralisação quase total nos governos Dilma; a desatenção às reivindicações dos povos indígenas; o PROUNI e o FIES como formas de transferência de recursos públicos para instituições privadas, custeando, na maioria das vezes, cursos superiores de baixa qualidade acadêmica; o estímulo às operações de Garantia da Lei da Ordem, com o consequente aumento da militarização da segurança pública; a lógica punitivista que fez aumentar tremendamente a população carcerária; a participação na ocupação militar do Haiti, a serviço dos interesses dos EUA; entre outras políticas e ações dos governos petistas que sinalizavam sua adesão a um neoliberalismo salpicado aqui e ali com pitadas de sensibilidade social.

Apoiar o PT no primeiro turno significa sucumbir ao neoliberalismo e abrir mão de uma candidatura e de um programa eleitoral que reafirme reivindicações imediatas e bandeiras históricas da classe trabalhadora do campo e da cidade, dos povos originários, do povo negro, ribeirinhos, quilombolas, mulheres, jovens, LGBTQIA+

Significa não apresentar à sociedade e ao eleitorado do próprio PSOL, que vota na esquerda uma alternativa eleitoral. Não ter candidatura própria, é impor um enorme desgaste político e eleitoral ao nosso partido.

Portanto, defendemos que o PSOL deve:

— Construir um programa anticapitalista, antimonopolista, antiimperialista, em defesa dos direitos dos trabalhadores, trabalhadoras e da população em geral; que defenda a soberania nacional e a autodeterminação dos povos; rompa com o sistema da dívida e revogue todos os mecanismos de desvios dos recursos públicos e a autonomia do Banco Central, realize a auditoria da dívida pública com participação cidadã e taxe as grandes fortunas, como determina a constituição federal.

— Construir candidatura própria à presidência da república em 2022, que expresse e defenda o programa construído coletivamente pelo partido.

— Condicionar qualquer aliança ou entendimento eleitoral, no segundo turno, à aceitação do programa referido acima.