NILDO OURIQUES·SEXTA, 25 DE MAIO DE 2018

A greve dos caminhoneiros que já avança pelo quinto dia, sem previsão de término, ameaça colocar o país em um impasse econômico e político. É preciso uma interpretação política para este evento de largas proporções, pois o senso comum e a aparência das coisas nunca são bons conselheiros. Neste sentido, contextualizar a greve como um momento da atual guerra de classes e da crise terminal do sistema petucano é fundamental, colocando-a onde realmente deve estar: mais uma contradição insolúvel do projeto liberal que está no poder desde a construção do Plano Real e da implementação da lógica da austeridade sobre o Estado e o povo.

Origem da greve

A origem da greve de caminhoneiros é anterior à adoção da nova política de preços da Petrobrás e à elevação recente do preço do óleo diesel. Tudo começou com a política liberal em defesa dos monopólios adotada ainda no primeiro mandato do governo Dilma. Uma das medidas da chamada “nova matriz econômica” foi a forte queda do IPI e a oferta de juros subsidiados através do BNDES para a compra de caminhões. Desta maneira, houve expressivo aumento da oferta destes veículos nas estradas brasileiras, em clara estratégia de prorrogar a deflagração da crise econômica por meio de subsídios aos monopólios da indústria automobilística.

Neste contexto, ampliou-se sobremaneira o assalto ao Estado brasileiro por parte dos capitalistas, o que viria a estourar logo em seguida, no momento de queda do preço dos produtos de exportação e na crise brutal de desemprego do setor automotor. Como resultado, os subsídios bilionários aos monopólios se somaram ao gasto financeiro do Estado. Quando Dilma eleva firmemente os juros em 2013, seguindo a deliberação dos banqueiros, estava deflagrada a profunda crise financeira da república rentista brasileira.

Dilma reage promovendo o pacote de austeridade trazido por Joaquim Levy, a primeira etapa do ajuste fiscal contra o povo brasileiro. Realiza o estelionato eleitoral ao cortar em 40% o investimento público e dificultar o acesso à alguns direitos trabalhistas. Por consequência, explode o desemprego e o país caminha para uma profunda recessão. Ainda em 2015, os caminhoneiros, que recentemente haviam comprado um ou mais veículos e estavam endividados por conta disso, sofrem com a queda da oferta de fretes e o aumento do preço do óleo diesel.

Na esteira do ajuste fiscal, Dilma inicia a mudança na política de preços da Petrobras, muito antes de Pedro Parente assumir a presidência. Reajusta o preço dos combustíveis na linha de sanar a crise financeira do Estado e agradar a sanha dos acionistas. Resultado: explode a primeira grande greve de caminhoneiros que viria a ferir de morte o governo petista.

Obviamente que, naquela greve, os donos das empresas de transporte passaram a conduzir o processo, transformando o movimento dos caminhoneiros em uma luta de empresários para tirar seu quinhão do Estado. Enquanto isso, os demais sindicatos de trabalhadores, majoritariamente sob hegemonia lulista, fizeram o mesmo que haviam feito em junho de 2013: trataram de acusar os manifestantes de meros golpistas, recusando-se a disputar os rumos do movimento.

A atual greve é deflagrada por motivos semelhantes a anterior. Se na anterior a queda dos fretes era mais profunda, agora a política de preços do combustível é mais danosa para os caminhoneiros. A política para a Petrobrás implementada por Temer, que prioriza a importação de óleo diesel justamente em momento de desvalorização do Real, explodiu o preço dos combustíveis. O desdobramento é o mesmo: greve ainda mais forte dos caminhoneiros, que inclusive aprenderam com o movimento de 2015.

A similaridade de ambos os momentos está em que, por um lado, a crise financeira do Estado permanece e se agrava e, por outro, a degeneração das condições de vida da classe trabalhadora se amplifica. Se todas as medidas adotadas por Dilma e Temer trataram de recuperar a lucratividade dos monopólios, não foram capazes de gerar crescimento econômico e redução do desemprego. A massa de lucros que não vai para a ampliação produtiva passa a pressionar as formas rentistas de valorização, redobrando a crise financeira do Estado.

Resumo da ópera: não há capacidade do projeto liberal de Michel Temer colher aquilo que prometeu, o país entra em recessão, com elevado desemprego e queda drástica da inflação. Assim, o aumento do óleo diesel, fundamental para a política de priorização dos acionistas da Petrobras, não pode ser repassado para o frete, fazendo explodir nova e mais radical greve de caminhoneiros.

Quem participa da greve?

Três perfis de caminhoneiros estão em greve. Trabalhadores contratados por grandes empresas, caminhoneiros autônomos (donos do seu próprio caminhão) e autônomos donos de pequenas frotas de caminhões. Se o primeiro perfil é tipicamente proletário (aquele que não dispõe dos meios de produção), o segundo e o terceiro supostamente são proprietários. Dizemos “supostamente” por um motivo altamente relevante: a crise capitalista que se aprofunda coloca em xeque sua posição. As dívidas dos caminhões estão aí, os custos de rodagem também, e não há perspectiva de crescimento econômico que possa assegurar suas propriedades no futuro.

Pesquisa da CNT divulgada em 2017 demonstra claramente este cenário assustador para os caminhoneiros. O número de empresas de transporte rodoviário de carga caiu de 156.765 para 111.743 entre 2015 e 2016, redução de 29%. Já nos caminhoneiros autônomos, a queda foi ainda maior. Eram 723.807 em 2015 e passaram a 553.643 em 2016. Isso representa um encolhimento de 23% da categoria. Nada nos leva a crer que o cenário não se aprofundou em 2017 e 2018, já que todas as condições para a liquidação dos caminhoneiros foram mantidas e, até mesmo, ampliadas.

Por isso mesmo, a greve se radicalizou justamente na ameaça de proletarização destes setores. É daí que emerge o desespero destes sujeitos que saem à greve, com a intransigência típica daqueles que estão dispostos a levar suas convicções até as últimas consequências. Já os motoristas contratados, sejam celetistas ou informais, aderem em sua maioria por pressão das empresas, já que o aumento ou redução do preço do combustível altera muito pouco os seus salários.

Obviamente que, em função destes setores de pequenos proprietários não se contraporem ao poder direto do capital, sua reivindicação acaba se resumindo à redução do preço dos combustíveis. Imediatamente não são revolucionários, não atuam contra a propriedade privada. Entretanto, indiretamente, paralisam toda a produção capitalista nacional, gerando prejuízos intoleráveis para os monopólios capitalistas.

O limite de sua reivindicação

A natureza de pequenos proprietários limita a reivindicação dos caminhoneiros. Resumem-se a reclamar seu quinhão no assalto ao Estado. Se os monopólios saqueiam por meio da dívida pública e das desonerações, por que os caminhoneiros, com todo este poder de parar o país, não podem pedir a sua parte?

Sem consciência de classe, as empresas de transporte passam a ser aliadas, já que autônomos e empresas reivindicam ambos a redução de seus custos. Não entendem, no entanto, que a dinâmica econômica da guerra de classes não reserva futuro para eles. Podem vencer e rebaixar seus custos, mas isso não impedirá que em um futuro breve percam seus caminhões e passem a trabalhar para monopólios em um contexto de superexploração da força de trabalho.

Os caminhoneiros somente poderiam vencer se estivessem ao lado da classe operária.

Onde está a classe operária?

Aqui mora o drama do atual momento político brasileiro, que já se arrasta há alguns anos. Os partidos liberais de esquerda e o sindicalismo oficial, comandados pelo lulismo, demonstram sua incapacidade completa de travar a guerra de classes. Ao invés de disputar o movimento de caminhoneiros, preferem repetir junho de 2013 e inventar fantasmas de que as mobilizações são expressões “claríssimas” da ascensão do fascismo. Mais uma vez, preferem ficar enclausurados em sua crença republicana e democrática vulgar. Não é por acaso que frases como “Lula livre”, “caminhoneiros ajudaram no golpe”, “estão pagando por terem derrubado a Dilma”, “caminhoneiros querem a intervenção militar”, etc., abundam dentro de suas hostes.

Nenhuma força do liberalismo de esquerda foi capaz de diagnosticar a profundidade da crise capitalista atual. Não conseguem perceber que estamos vivendo a crise terminal do sistema petucano, sem possibilidade de sua reedição. Como não tem isso em mente, continuam atuando na tentativa de defender um passado que criou a atual guerra de classe. Os trabalhadores não aceitam mais o cretinismo parlamentar segundo o qual seus problemas poderiam ser resolvidos no confortável ambiente da casa legislativa. Ao defenderem o sistema petucano e não o responsabilizá-lo pelos dramas atuais, as lideranças do liberalismo de esquerda reforçam um divórcio profundo com a classe em luta.

Por isso mesmo não mudam sua conduta política. Nenhum trabalho organizativo e de agitação e propaganda foi feito desde junho de 2013 ou desde a última greve de caminhoneiros em 2015. Continuam aferrados ao seu liberalismo, bloqueando a luta dos trabalhadores e jogando no colo das forças reacionárias a organização destes movimentos.

A crise e as greves permanecerão

As medidas acordadas entre Temer e representantes dos caminhoneiros, inexoravelmente reforçam a crise financeira do Estado, a guerra de classes e as profundas contradições do programa econômico em curso. A desoneração da Cide sobre os combustíveis, por exemplo, gera um custo expressivo em renúncia fiscal para o Estado até o final do ano. Também existem tratativas entre Temer e os governadores para reduzir a tributação de ICMS sobre os combustíveis.

A revisão da política de preços da Petrobras, tocada a ferro e fogo por Pedro Parente, será a última alternativa do governo e a menos desejável pelo capital. Colocaria um sério problema na estratégia de liberalizar o mercado de petróleo brasileiro e atrair dólares para compensar o déficit do balanço de pagamentos. Diante desta possibilidade, os fundos de investimento imediatamente pressionam as ações da Petrobras.

A única saída para o Estado liberal é reforçar a austeridade para cima do povo brasileiro. Prepara-se o clima para a terceira etapa do ajuste fiscal iniciado por Dilma e radicalizado por Temer. Certamente teremos uma nova tentativa de destruição da previdência, a intensificação das privatizações das empresas estatais, a ampliação do sucateamento do serviço público e uma nova rodada de arrocho sobre estados e municípios.

O anúncio do uso das forças nacionais de segurança por Temer não muda o cenário. Inclusive, há sérias dúvidas de que seja possível desmobilizar os caminhoneiros através desse recurso.

De outro lado, o aumento da exploração em conjunto com a recessão econômica permanece. O Brasil patina no contexto da economia mundial e não encontra um encaixe que lhe permita participar novamente das “cadeias globais de valor”.

Certamente as greves permanecerão em alta, não apenas dentre os caminhoneiros, mas também em outras importantes categorias. Não esqueçamos, por exemplo, das recentes greves dos trabalhadores da construção civil de São Paulo, do serviço público de Florianópolis e da Mercedes-Benz em São Bernardo. A poderosa ascensão grevista, que, segundo dados do Dieese, já ocorre desde 2012, terá a partir de agora um novo impulso.

Nestas circunstâncias, nosso objetivo estratégico é a superação das direções sindicais e partidárias dominadas pelo liberalismo de esquerda. Não se pode vacilar diante da radicalização da guerra de classes. São tempos de novo radicalismo político, tempos da Revolução Brasileira.

PROGRAMA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA