Ilustração: Obra Lugar natal, de Eduardo Kingman

Me pediram para escrever um breve resumo sobre o que vivemos nesses tempos sombrios e, como não poderia deixar de ser, detive-me um instante para avaliar se tal tarefa melhor não deveria ser atribuída a outrem. É que ao tentar rever os fatos, elencá-los de modo sucinto e menos prolixo, encontro dificuldade em não parecer redundante ou repetitivo.

Sim, vivemos tempos difíceis!

Nada do que está posto debaixo do Sol foi tão efêmero quanto hoje.

Mesmo assim, sempre nos restará uma canção. Seja ela um lamento de Brecht ou um cântico de luta de Maiakovski; Uma descrição realista de Drummond ou um convite às entrelinhas de Chico Buarque; Os chilenos nos deram e dão boa cepa: Violeta Parra, Victor Jara. A Argentina nos deu Mercedes Sosa, que nos enaltece a alma com sua potente voz de pássaro canoro. O que não dizer das belas trovas cubanas de Sílvio Rodriguez e Pablo Milanês?

Temos ainda os Chicos (Science e César), Criolo e Elza Soares para nos devolver a identidade.

Mas “por que razão haveríamos de estar tristes?”

“Outros Outubros virão, outras manhãs, plenas de Sol e de luz!”

Por ora, é reagir!

É lutar pelo que perdemos e pelo que ainda não conquistamos!

“É tempo de homens partidos!”

E é preciso rejuntá-los!

Mulheres e homens que lutam são imprescindíveis!

O cheiro e a cor da fumaça pairam sobre nós.

A TV nos diz as últimas más notícias em tom de necessárias.

Nunca se matou tanta criança!

Nunca se matou tanta mulher!

Nunca se matou tanto índio!

Nunca se matou tanto negro!

Nunca se matou tantos LGBTQI !

Nunca se matou tantos jovens da periferia!

Nunca se matou tanta gente!

Nunca se matou tanto!

E os motivos são os mesmos: ódio, machismo, racismo, xenofobia, preconceitos, segregação social, religiosa.

No Oriente Médio há menos períodos de paz do que de guerra.

Na África persiste a mortandade fratricida pelo espólio do que foi roubado pela Europa.

Nas Américas há fome e doenças em razão da desigualdade e dos muros; muros político-ideológicos impostos pela língua estranha à nativa como forma de dominação ou muros físicos, como o construído para isolar os pobres da latino-américa, na política eugenista do filho de imigrantes do “grande irmão’ do norte.

Os europeus cercam suas fronteiras para os emigrantes árabes, africanos.

Os brasileiros se dividem entre aqueles e aquelas que seguem o caminho do matadouro, como quem ruma para a paz celestial e os/as que discordam do rebanho conduzido pelos falsos pastores e propagam a necessidade do avanço histórico das sociedades pela busca da justiça e paz sociais.

As naus partem a esmo, sem vela, sem porto, sem cais na solidão.

Os ventos do passado sopram forte contra a esperança e a luta.

Que fazer?

Erguer a cabeça e não desistir, resistir, mais do que isso, enfrentar os dragões de Quixote, as serpentes gregas e os Ciclopes de Hércules, hoje nominados Capital !

Nosso tempo é agora!

Contra o ódio e a ignorância marcharemos com a lanterna dos afogados, cheia de amor, compaixão, carinho e inclusão!

Os cântaros se encherão do melhor vinho, aquele que se faz de terra, trabalho e pão; e se encherá de lágrimas o coração partido, remendado pelas mãos de uma criança ressuscitada da praia italiana!

Os caminhos serão iluminados pelos anjos tolhidos pelos fuzis dos pobres armados pelo opressor nas favelas cariocas ou pelas duras secas sertanejas onde o que menos falta é água!

É tempo de colheita!

A César, o que é de César!

A Deus (e a nós), o que é de Deus!

E teremos cruzadas, não como as medievais ou das crianças polonesas, mas de mães de maio, com mães de meninos flamenguistas, a buscar justiça em comunhão com os pobres do mundo inteiro!

E haverá manifestos de amor e sororidade, paternidade, maternidade e fraternidade!

E a cor da pele nada mais será que a cor dos olhos, janelas da alma, donde veremos não o espírito das leis, mas o caráter verdadeiramente e demasiadamente humano!

Não mais nos convencerão de que abrir mão do que temos para meia dúzia de eleitos será melhor para milhões. E não será difícil entendermos que teremos que tomar de volta todo ouro que entregamos aos enganadores, estupradores e assassinos.

A máquina de moer gente emperrará!

A máquina de fazer felicidade será montada, demandará esforço imenso, de toda gente que foi feita para brilhar, não para morrer de fome!

A classe trabalhadora não escolherá fronteira, bandeira, nome pátrio; seu Estado será o mundo inteiro; seu hino: A Internacional, que será cantada na versão brasileira de “Canção Amiga”, que haverá saltado da velha nota de 50 cruzados novos.

Sempre haverá uma canção.

Feliz novos tempos!

Cícero Che